O Sofrimento do Desejo
Uma das maiores causas do sofrimento em nossas vidas, se não for a maior, é sem dúvida o desejo.
Vamos nessa oportunidade falar sobre a natureza do desejo e mostrar como ela está quase sempre ligada ao sofrimento em nossas vidas.
A filosofia budista acredita que o desejo seja a raiz de todo sofrimento.
A palavra desejo nos textos originais budistas é tanha, do idioma Pali.
Tanha significa literalmente “sede”.
Buda usava essa palavra para representar a sede de vida, ou seja, uma ânsia de ter experiências, principalmente experiências agradáveis e prazerosas.
Essa palavra foi traduzida para as línguas neolatinas como “desejo”.
Essa sede, ânsia, impulso ou desejo é, segundo Buda, o início de todo processo de sofrimento.
As quatro nobres verdades ensinadas no Budismo descrevem a origem do sofrimento e o fim do sofrimento, e colocam “tanha” como sua causa primordial.
Não apenas Buda defendia o desejo como estando associado ao sofrimento, como também outras filosofias orientais tinham e têm igualmente essa crença.
O primeiro ponto que deve ser analisado é a pergunta: por que o desejo existe?
Segundo Platão, todo desejo começa numa falta, numa ausência de alguma coisa.
Isso nos parece bastante claro.
Sentimos que alguma coisa está faltando em nós e buscamos nos objetos sensíveis do mundo a completude dessa falta.
Essa complementação da falta gera nos seres uma sensação de satisfação, de prazer, de estar preenchendo algum vazio em nós.
Há uma falta…então algo vem e preenche essa falta.
Esse processo gera prazer e satisfação.
Da mesma forma que quando estamos no frio e passamos a um lugar quente, esse calor também gera uma sensação prazerosa, de alívio, pois o frio foi contrabalanceado pelo quente, criando assim uma sensação de harmonia e equilíbrio, de ausência e complementação.
O mesmo ocorre quando existe uma falta e essa falta é preenchida por algo.
O desejo sempre está relacionado a algo que nos gera algum tipo de prazer, conforto, proteção, estabilidade, contentamento, mesmo que seja apenas uma satisfação mental.
Por exemplo, um homem ganha uma discussão com outro homem, afirma seu ponto de vista e fá-lo prevalecer…ele sente uma satisfação mental que está fora do domínio dos sentidos físicos.
Além da satisfação física e mental, há também a satisfação emocional.
Tanha pode ser explicado como o impulso ou a ânsia de sair do lugar, por já não se estar mais satisfeito no local em que nos encontramos.
Esse é o anseio pela existência.
Desejamos sair de um lugar a outro em busca de experiências, de novas experiências.
Buscamos o diferente que pode ser deleitoso ou aprazível de alguma forma.
Vamos de um lugar que consideramos pior para outro que acreditamos ser melhor.
O melhor nesse caso é sempre o mais agradável.
Aqui há uma mudança, uma transição de um estado a outro.
Esse impulso pela mudança de estado é a raiz de dukkha, o sofrimento, a primeira nobre verdade do budismo que defende ser o sofrimento a natureza deste mundo.
Uma boa imagem para representar o processo de tanha é o seguinte: um homem ficou o dia inteiro na cama, deitado, sem fazer nada.
Ele começa então a ficar entediado, pois reconhece que está muito tempo parado no mesmo local.
Esse tédio o leva a imaginar um lugar melhor onde pode ter outras experiências mais interessantes do que ficar deitado o dia inteiro.
Aqui notamos a ação de tanha, que se cansa do igual e faz surgir o impulso, a ânsia por experimentar algo novo. Assim que o ser humano começa a experimentar o novo por um tempo, logo ele o conhece, e então o novo deixa de ser novo e se torna algo gasto e entediante.
Assim, ele aspira a uma experiência diferente, e depois a outra experiência diferente…e assim por diante.
Sempre que ele experimenta algo e esse algo já se torna conhecido, ele sente o impulso de experimentar outras coisas.
Essas novas experiências devem ser sempre prazerosas, agradáveis; ele deve sentir sempre que está melhorando e nunca piorando.
Quando ele não consegue seu intento de mudar para algo melhor, ele fica triste, sofre, fica ansioso e aqui o sofrimento começa a bater na sua porta.
O sábio não possui tanha, pois ele está sempre feliz e em paz onde quer que esteja, não anseia pelas novas experiências, não anseia em sair de onde está.
Por isso o sábio medita…fica ali no mesmo lugar e nesse lugar já encontra tudo.
Não precisa viver o novo…até porque todo novo um dia se torna velho e o velho sempre acaba…e chegando ao fim, o sofrimento é gerado.
Não apenas há sofrimento quando chega ao fim, mas muitas vezes quando algo bom vai terminando, o sofrimento se faz presente.
Assim, caímos no ciclo do samsara, da impermanência, que segundo a literatura budista sempre gera “perda, sofrimento e morte”.
Tudo que é bom, termina…e esse término, sempre gera sofrimento.
Claro que estamos utilizando a ideia do movimento de um ponto a outro como metáfora, pois esse movimento não é apenas um movimento em direção ao objeto desejado.
Esse movimento também pode ser um esforço de se ficar no mesmo lugar.
Quando nossa condição é boa, agradável e gera prazer, podemos desejar permanecer neste estado indefinidamente. Ficar paralisado num lugar também é uma forma de movimento, é um movimento que caminha na via oposta de se sair de um lugar.
Em outras palavras, a ausência de movimento também é movimento.
Ficar parado num local de conforto, comodidade, também é um movimento em direção a uma condição agradável que não desejamos que termine.
A evitação de se sair do lugar e ficar apenas no conhecido, na chamada zona de conforto, também vem de tanha, pois é uma forma de fugir de experiências desagradáveis ou traumáticas que tivemos no passado.
O segundo ponto que precisamos considerar nos mostra como o desejo já é um sofrimento em si mesmo.
Vamos imaginar que um homem deseja uma mulher e não pode ter essa mulher.
O ato de desejar e não poder usufruir do prazer é, em si mesmo, um sofrimento.
Ele deseja o sexo com a moça…e nesse desejo existe o objeto perseguido, que é o corpo da moça.
Mas aqui também a sua falta quando esse homem não consegue possuir a moça no ato sexual.
Nesse aspecto, o prazer e a dor da falta se misturam numa só experiência.
Ao mesmo tempo que o homem deseja o que não pode ter e isso lhe causa dor, ele sente prazer ao contemplar a imagem da mulher desejada.
Neste exemplo, como em muitas outras ocasiões, prazer e dor caminham lado a lado.
O terceiro ponto a se ponderar explica melhor essa falta.
Como já dissemos, esse processo de tentar sempre se preencher com as coisas do mundo é o que Buda chamou de “sede de vida”, um impulso de preenchimento de algo que está faltando dentro de nós.
Esse impulso de alimentar nosso interior com o prazer, o conforto, a estabilidade, as posses, ou qualquer outra coisa que possa representar um alívio para a falta nada mais é do que uma ilusão.
Mas por que ilusão?
Essa resposta é dada na própria filosofia budista.
A ilusão do preenchimento é compreendida quando tomamos consciência de que todos os fenômenos do mundo são irreais e igualmente vazios, tal como a falta ou ausência que existe dentro de nós.
Assim, como pode o vazio preencher outro vazio?
Não é possível…
Segundo o Budismo, essa ausência ou falta que cria o desejo só pode ser complementada com a iluminação.
A iluminação, ou o despertar é a única saída para esse preenchimento do vazio, pois é o nosso contato com o real. Não pode a ilusão alimentar a ilusão, assim como não pode o vazio dos fenômenos do mundo alimentar o vazio dentro de nós.
Na filosofia espiritualista se diz algo semelhante: que essa falta só pode ser saciada com Deus, ou com o resgate de nossa essência.
Em última instância, o Budismo e o Espiritualismo defendem a mesma ideia básica, embora usando conceitos distintos.
O quarto ponto nos fala sobre a ilusão dessa complementação, desse preenchimento usando as coisas do mundo.
Como já explicamos, a filosofia budista e outras tradições espirituais afirmam que essa falta nunca será preenchida pelas coisas do mundo, pelas satisfações, pelos prazeres, pelo ter, pelo usufruto do bom e do melhor que o mundo pode nos oferecer.
Segundo algumas tradições o desejo nunca será preenchido, pois quando um desejo acaba…outro desejo sempre começa. Imagine um homem que lutou durante algum tempo para subir de cargo numa empresa e ganhar mais.
Assim que ele consegue esse cargo, ele pode desejar ocupar um cargo ainda maior, e assim, ganhar mais dinheiro e ter ainda mais poder dentro da empresa.
Qualquer pessoa que pare e reflita sobre esse comportamento de querer sempre mais e mais pode observa-lo abundantemente na vida humana.
O homem que conquista 10, quer conquistar 20; quando conquista 20, quer conquistar 50; quando conquista 50, quer conquistar 100…e assim por diante.
Assim que um desejo termina…outro começa.
Mas por que o ser humano quer sempre mais e mais?
Por que aquilo que ele considera a satisfação do desejo não o pode completar verdadeiramente.
Temos apenas a ilusão de completude, de preenchimento da falta…mas se o ser humano sempre busca mais e mais é porque aquilo que ele deseja não o completa, não ocupa seus espaços vazios interiores.
Se a conquista dos desejos o completasse, bastaria apenas um desejo satisfeito para que ele estivesse feliz…e estando feliz, não precisaria mais de nada.
O homem que ocupa um cargo maior em sua empresa, já tem dinheiro suficiente para viver bem, não desejaria ter ainda mais, conquistar mais dinheiro que ele sequer pode gastar. Isso nos prova que o querer mais e mais não nos preenche.
Outro ponto importante nos diz que quanto mais tentamos preencher esse vazio, mais o aumentamos.
Isso significa que quanto mais uma pessoa tenta artificialmente ocupar os espaços de seu vácuo interior, mais esse vácuo aumenta de tamanho.
Sim…essa é outra constante na vida humana.
Uma pessoa que termina um casamento, sente-se triste, solitária e começa a comer muitos doces…ela está tentando preencher uma carência com os doces.
No entanto…ela não só não conseguirá diminuir essa carência como poderá aumenta-la.
Mas por que isso ocorre?
Quanto mais ela tenta se afastar de sua carência com os doces, mais a carência aumenta…por não ser trabalhada a causa raiz da carência.
Até mesmo nosso organismo funciona dessa forma.
Quando nos alimentamos pouco, nosso estômago recebe menos comida, e assim…ele permanece menor.
Mas se um homem começa a comer mais e mais…esse excesso fará com que seu estômago vá se alargando, ampliando, ganhando volume.
Nesse momento, ocorre o seguinte: quanto mais comemos, mais aumenta o vazio do nosso estômago…e mais fome sentimos entre uma refeição e outra.
Quanto mais nos alimentamos, mais nosso apetite aumenta no futuro…
Aumentando nossa fome, precisamos comer cada vez mais para preencher um vazio maior de nosso estômago.
O mesmo ocorre com nossos sentimentos: quanto mais tentamos alimenta-los com o fútil, maior será nosso apetite sentimental e mais nossas emoções vão demandar o supérfluo.
O quinto ponto fala sobre as três etapas do sofrimento do desejo.
Essas três etapas estão basicamente:
1) No desejo por ter algo e ainda não ter;
2) No medo de perder aquilo que já se conquistou;
3) No sofrimento que eclode quando não conseguimos mais manter aquilo que julgávamos possuir.
Uma pessoa deseja um objeto e sofre por não ter…depois conquista esse objeto e sofre pelo medo de perde-lo… quando perde o objeto, sofre pela perda do que possuía.
Essas são as três etapas do sofrimento do desejo.
Essas três fases podem ser melhor aludidas no exemplo do casamento.
Uma mulher deseja muitíssimo se casar, esse é seu sonho de vida.
O tempo vai passando e ela não consegue encontrar seu noivo.
Essa situação de desejar casar e não encontrar alguém, obviamente, gera sofrimento.
Como disse Buda: “não obter o que se deseja é sofrimento”.
Quanto mais o tempo passa…mais ela sofre.
Finalmente ela encontra o homem de sua vida e se casa.
Aqui há sem dúvida um momento de júbilo, de alegria, de alívio pela suposta complementação do vazio do desejo. Durante seu casamento, seu desejo é, claro, manter-se casada a qualquer custo.
Assim, qualquer sinal de que o casamento não vai bem pode ser fonte de sofrimento.
Quando um desejo é muito forte, tentamos de todas as formas garantir que não vamos perde-lo…e esse é mais um sofrimento.
Aqui o medo de perder também gera sofrimento, e para evitar essa dor, a moça pode apresentar uma série de sintomas, como ciúmes, sentimento de posse, cobranças excessivas, exigências diversas, isolamento do seu parceiro, etc.
Isso faz, obviamente, o casamento começar a não ir bem.
Aliás, uma constante na vida humana é que quanto mais desejamos prender algo, mais esse algo escapa de nós…isso é particularmente verdadeiro com relacionamentos de diversos tipos.
Assim, vamos supor que o casamento dessa moça esteja agora por um fio.
Aqui a carga do sofrimento será aumentada, pois todo o sonho de uma vida baseado no desejo de se casar começa a desmoronar.
Antes disso, é possível também que a moça comece a se anular para manter o casamento, submetendo-se a situações extremas de, por exemplo, autoritarismo do seu cônjuge, tudo para manter o casamento que ela tanto deseja.
Depois, na terceira fase, vem a separação…e claro, a separação é igualmente fonte de intenso sofrimento.
Como disse Buda: “a separação daquilo que é prazeroso é sofrimento”.
Todos podem observar que nas três fases do desejo (busca do objeto, manutenção do objeto e perda do objeto), em todas há sofrimento.
E claro…quanto maior o desejo, maior o sofrimento em todas as três fases.
Cada uma delas mostra que o sofrimento sempre está presente, de um modo ou de outro.
(Artigo : Hugo Lapa)
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